Blog do José Cruz

Doping infantil e o conflito com o Estatuto da Criança e do Adolescente

José Cruz

 

Competidores menores flagrados por uso de doping têm seus nomes preservados de divulgação, por lei. O crime compensa?

Por Julian Romero

Jornalista especializado em natação

Imaginemos a seguinte situação, num cenário fictício e bizarro, mas possível na legislação brasileira:

9 de agosto de 2016

Uma das maiores promessas da natação brasileira sobe ao pódio olímpico, nos Jogos do Rio de Janeiro. Aplausos, o atleta se emociona e chora. Depois, agradece aos pais, ao treinador e ao Governo Federal pela estrutura e Bolsa Atleta recebidas.

16 de agosto de 2016

O Comitê Organizador diz que o mesmo brasileiro testou positivo no antidoping. A imprensa brasileira divulga a nota, mas omite o nome do atleta porque ele tem apenas 16 anos. Mas o Comitê Olímpico Internacional e Agência Antidoping, além da imprensa mundial estampam o nome completo do nadador punido.

Realidade

Em 14 de novembro de 2013, um atleta testou positivo em um dos oito exames antidoping (número extra-oficial, já que não há informação oficial) realizados durante o Brasileiro Infantil (13 e 14 anos) de Natação, em Vitória. Não era a primeira vez que a CBDA (Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos) realizava antidoping em categorias menores de 16 anos.

A partir daí, sob a justificativa de um código da WADA, que ainda não está em vigor (WADA Code 2015, artigo 14.3.6) e do artigo 247 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sobre a preservação da identidade e imagem, a CBDA apenas confirmou que houve um exame positivo. A punição, após o Painel de Controle de Doping, seria de quatro meses e os resultados, medalhas, prêmios e diplomas do atleta seriam anulados.

No fim de fevereiro, a Federação Internacional de Natação (FINA) publicou o nome do atleta no relatório de casos de 2013, mas não exibiu a página principal dos relatórios. Todos os casos anteriores, inclusive de outros atletas menores de 16 anos – incluindo aí um nadador do Quirguistão, Vladislav Shuliko, de 13 anos, que testou positivo para a substância Metilhexaneamina, estimulante presente em muitos suplementos, dentre eles o infame mas famoso Jack3d.

Até hoje, 5 de março, o nome do atleta ainda estampa nos rankings oficiais com os resultados que deveriam ser anulados já no dia 9 de janeiro, quando finalizou o processo em casos positivos com a apresentação de sua defesa perante o Painel de Controle. Não há nada indicando que a pontuação e pódio da competição serão reajustados. História triste? Situação difícil? Uma pena? Assunto delicado?

Incoerência

Em março de 2012, durante uma etapa do Campeonato Brasileiro de Maratonas Aquáticas, em Porto Belo (SC), Bárbara Benke, então com 16 anos, testou positivo para Isometepteno, um vasoconstritor que é encontrado num medicamento conhecidíssimo, a Neosaldina. Pena: quatro meses de suspensão a partir de 11 de março. Confidencialidade do nome? Nenhuma! O nome foi estampado em boletim e Ato da Presidência da CBDA e publicado na página principal dos relatórios da FINA, além de notícia da própria Confederação. Veja aqui.

Segundo o artigo 2 do ECA, considera-se adolescente aquele entre 12 e 18 anos de idade. Não sou juiz nem advogado, mas pelos olhos da lei ambos os casos citados envolvem adolescentes e pela lei deveriam receber o mesmo tratamento porque é o mesmo caso, exame positivo para doping, ou como glamurosamente e tecnicamente chamam, ''resultado analítico adverso''.

O Código da WADA é bom porque preza a transparência do início ao fim de todos os casos. Sob uma blindagem moral e legal (ambas falhas), a CBDA evitou a transparência e deu um recado virtual aos outros milhares de atletas de 12 a 18 anos: se nós pegarmos você num exame positivo não se preocupe, vamos preservá-lo porque você está numa ''condição peculiar de desenvolvimento de personalidade''.

Por volta de 1994, Ruben Márcio de Araújo, na época árbitro geral das principais competições pelo Brasil, relatou a mim: ''As regras são para proteger as pessoas que as cumprem, não para punir.'' As referidas regras são as da natação, mas a frase é tão forte que faz lógica também quando tratamos do assunto doping: e para os atletas que ficaram atrás, que acreditam que a moral do esporte é desenvolver um cidadão e que meios ludibriosos para alcançar o mérito são errados indo contra o princípio olímpico ''mente sã, corpo são''?

Quando se noticiou, em 2012, que a CBDA faria os exames antidoping em campeonatos nacionais para atletas de 13 a 16 anos, foi uma atitude correta da CBDA, mostrando melhores intenções na luta contra o doping perante à comunidade aquática, à FINA e à WADA.

Questão jurídica

Mas a CBDA errou em seguir uma cartilha moral e judiciária no Brasil. Ela se baseia no Código 2015 da WADA, que ainda não está em vigor, no momento de o exame valer o Código de 2009. Além disso, o referido artigo, 14.3.6, é contraditório para o caso exposto (em tradução livre, ''a divulgação pública obrigatória da violação de regras não é necessária para menores de idade ou atletas que não são de nível internacional ou nacional''). O atleta foi quatro vezes campeão brasileiro da categoria, mas isso segundo o argumento da CBDA não é um atleta nível nacional.

No Brasil, a CBDA também errou ao justificar-se no ECA que ela mesmo já jogou às favas no caso da atleta de 16 anos em 2012, além de confundir direito criminal com direito desportivo. O artigo 247 do ECA faz parte do Capítulo II – Das Infrações Administrativas –  e diz:

''Divulgar total ou parcialmente, sem autorização devida, por qualquer meio de comunicação, nome, ato ou documento de procedimento policial, administrativo ou judicial relativo a criança ou adolescente a que se atribua ato infracional''. Exame anti-doping positivo é ato infracional?

Finalmente, a mensagem que a CBDA passou, ao preservar a todo custo a identidade do atleta, além de envolver a FINA, é de que crianças que fazem uso de substâncias proibidas para ganho de performance recebem proteção da entidade máxima da natação no Brasil. Em outra palavras, “o risco compensa”.

Não é o caso, mas se um atleta tem sua identidade preservada fica difícil argumentar que qualquer benefício financeiro do clube, do município, do estado ou do governo federal seja analisado ou suspenso.

Com a proximidade das Olimpíadas, crescem as tentativas de resultado a todo custo para beliscar um pouco da farra financeira-esportiva, uma montanha de dinheiro proveniente do Ministério do Esporte sendo jogada à vontade com mínima responsabilidade de contrapartida por parte dos beneficiários.

Parece uma caça às bruxas, mas novamente precisamos relembrar que é preciso que, ao menos, a punição às regras seja respeitada para mostrar a quem segue e a quem está procurando caminhos mais curtos que há limites que são respeitados e seguidos à risca.

Ao invés de usar dos exames para moralizar a CBDA acabou desmoralizando aqueles que não fazem uso de substâncias proibidas. A linha tênue entre ''erro'' e ''intencional'', para mim, estava bem clara com o Código da WADA, pois o atleta é responsável pelo que ingere. Talvez não seja o único responsável, é bem verdade, mas quem é mesmo que sobe no pódio?

Para saber mais:

BOLETIM 008/2014, CONFIDENCIALIDADE DO ATLETA SUSPENSO: http://www.cbda.org.br/boletins/boletim-no-00814
ATO DA PRESIDÊNCIA 02/2014, DECISÃO DO PAINEL DE CONTROLE: http://www.cbda.org.br/wp-content/uploads/2014/01/ATO-DA-PRESIDÊNCIA-MAURÍCIO-BEKENN.pdf
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
PRINCIPAIS MUDANÇAS NO CÓDIGO DA WADA: http://www.wada-ama.org/Documents/World_Anti-Doping_Program/WADP-The-Code/Code_Review/Code%20Review%202015/Code%20Final%20Draft/WADC-2015-draft-version-4.0-significant-changes-to-2009-EN.pdf