Herança ilegal de Eurico Miranda é sepultada pela Justiça
José Cruz
Foram nove anos de espera, mas, enfim, o Supremo Tribunal Federal sentenciou: o Estatuto do Torcedor é instrumento legal e a cartolagem deve obedecer. Quem explica é um advogado especialista em esporte. Confira.
Breves considerações a respeito da decisão do STF sobre o Estatuto do Torcedor
Por César Cunha Lima
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na última quinta-feira que o Estatuto de Defesa do Torcedor (EDT) não viola a Constituição Federal de 1988.
Todos os ministros presentes à sessão (Cezar Peluso, Rosa Weber, Marco Aurélio Mello, Cármen Lúcia Rocha, Ayres Britto, Luiz Fux, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello) votaram pela legalidade do EDT.
Não cabe recurso dessa decisão. Foi o epílogo de uma batalha jurídica iniciada em 2003, pelo Partido Progressista (PP), sobre a extensão do direito de livre associação e da autonomia das entidades de administração do desporto (confederações, federações e ligas) e de prática desportivas (clubes).
Segundo o PP, alguns dispositivos do EDT violariam os artigos 5º (incisos X, XVII, XVIII, LIV, LV, e §2º), 18 (caput), 24 (inciso IX e §1º) e 217 (inciso I) da Carta Magna.
A ação direta de inconstitucionalidade (Adin) ajuizada do PP foi em grande parte influenciada pelo então deputado federal Eurico Miranda (RJ), um dos mais ilustres representantes da chamada “Bancada da Bola”, grupo de parlamentares fortemente ligado a clubes, ligas, federações e confederações esportivas.
Em 17 de setembro de 2003, o então vice-procurador geral da República, Antônio Fernando de Souza, publicou parecer segundo as alegações do PP não deveriam prosperar. O STF acolheu os argumentos da Procuradoria Geral da República e entendeu que o EDT aborda questões gerais referentes sobre autonomia esportiva, razão pela qual não haveria inconstitucionalidade no EDT.
Legalidade
Resumidamente, o STF entendeu que o EDT limita-se a princípios gerais, normas amplas sobre esporte, o que não caracterizaria uma interferência estatal indevida na livre associação para fins lícitos nem na autonomia das entidades esportivas dirigentes e dirigidas.
Compete ao Estado, afinal, estabelecer os princípios amplos da via em sociedade, entre os quais o direito ao contraditório e à ampla defesa em todos os processos judiciais e administrativos (incluindo os da Justiça Desportiva), a proibição de penas cruéis (chibatadas, degredo, etc.) e a proteção à integridade física e psicológica de menores de idade. Não está na alçada de atuação estatal detalhar questões que, por sua própria natureza, deveria ser estipuladas pelos entes esportivos.
Decisão judicial deve, sempre, ser cumprida, especialmente quando oriunda da Corte Constitucional. Mas toda ação humana pode ser analisada de forma crítica, até mesmo uma decisão unânime da mais alta instância judicial do país.
Em vez de embarcar alegremente no coro dos contentes e repetir impensadamente chavões jornalístico-publicitários (“vitória da Justiça sobre os interesses de dirigentes esportivos que não querem ser responsabilizados por suas ações”, “derrota da bancada da bola”, “consagração dos direitos do torcedor”, etc.), é necessário refletir seriamente sobre os fundamentos da decisão do STF e suas possíveis repercussões sociais.
Inegavelmente, o EDT possui uma série de pontos que são (ou deveriam ser, pelo menos) do âmbito interno das próprias entidades esportivas. Afinal, não compete ao Estado, por exemplo, estabelecer em quantos dias um árbitro deve entregar a súmula da partida ao organizador da competição nem determinar que uma confederação deve possuir uma Ouvidoria. Essas questões, por melhores que sejam seus resultados ou as intenções que a motivaram, são, obviamente, miudezas que deveriam ser decididas pelos próprias entidades de prática e de administração do desporto.
A tutela estatal retarda o crescimento social e propicia o surgimento de Estados que desrespeitam os mais comezinhos direitos do cidadão. Flertar com a interferência estatal indevida na organização social pode resultar, em médio e longo prazos, em um matrimônio, sempre indesejado, com regimes autoritários. Quanto maior o Estado, menor a sociedade. O corpo social desenvolve-se plenamente apenas quando livre dos grilhões estatais.
César Cunha Lima é advogado