Blog do José Cruz

A propósito da construção do Sistema Nacional do Esporte

José Cruz

“Uma nação desenvolvida esportivamente é aquela em que todos cidadãos têm direito e acesso, de forma voluntária e livre, às práticas esportivas (e a outras práticas corporais não esportevizadas); assim como a eficiência do sistema de saúde não se mede pelo número de hospitais de alta tecnologia”

Por Valter Bracht

Nos dias 23 e 24 de junho de 2015 a Comissão de Esportes da Câmara Federal, em articulação com o Ministério do Esporte, promoveu o Seminário “Sistema Nacional do Esporte em construção: sistemas públicos nacionais e modelos esportivos internacionais”. Nesse seminário foram apresentados e discutidos alguns sistemas brasileiros como o SUS e o da Cultura, entre outros, e sistemas esportivos de outros países (EUA, Rússia, Alemanha), além de conceitos e concepções de esporte e modelos de financiamento.

Valter

Na minha intervenção no seminário, na mesa-redonda que discutiu os sistemas esportivos dos EUA, Rússia e Alemanha, destaquei algumas características do esporte moderno e suas implicações para pensar um sistema e as políticas públicas para esse setor. Retomamos aqui, brevemente, alguns aspectos que consideramos importantes.

Um deles é o reconhecimento, já presente na legislação esportiva atual, de que o esporte é hoje um fenômeno diverso e multifacetado. Busca-se captar e retratar essa diversidade nos conceitos de Esporte de Alto Rendimento, Esporte Participação e Esporte Educacional. Apesar da impropriedade da expressão Esporte Educacional, mais adequado seria, a meu ver, Esporte Escolar, o que importa e mais significativo é como compreendemos as características e a função social dessas diferentes manifestações.

Uma primeira observação é a de que esses três subsistemas operam com códigos que orientam suas ações internas muito distintos: O esporte de alto rendimento opera a partir do código binário vitória-derrota; O esporte participação a partir dos códigos do divertimento, da saúde, da sociabilidade, do bem estar; e o esporte escolar com o código da formação (Bildung) ou da educação.

Autonomia

É fundamental reconhecer a autonomia (sempre relativa) de cada uma dessas manifestações e com isso superar o modelo da pirâmide. Esse modelo buscou sempre instrumentalizar o esporte escolar e o esporte participação, colocando-os a serviço do esporte de alta performance. Esse é um equívoco tanto político quanto técnico. A idéia de que a culminância da prática esportiva nacional deve ser o desempenho das nossas equipes nos grandes eventos internacionais produz efeitos negativos no âmbito do esporte participação e escolar.

Uma nação não tem alto índice de desenvolvimento esportivo porque ganha muitas medalhas (essa é uma ideologia construída pelo sistema esportivo e pelos interesses econômicos a ele ligados); uma nação desenvolvida esportivamente é aquela em que todos cidadãos tem direito e acesso de forma voluntária e livre, às práticas esportivas (e a outras práticas corporais não esportevizadas); assim como a eficiência do sistema de saúde não se mede pelo número de hospitais de alta tecnologia.

O esporte de alto rendimento ou espetáculo tornou-se uma prática extremamente especializada, com uma tecnologia muito específica, de maneira que sua relação com a prática esportiva do cidadão comum alterou-se substancialmente.

O cidadão comum não toma como referência para a prática esportiva o que acontece no plano do esporte de alto rendimento. Isso explica porque o nível de prática esportiva por parte da população não é afetado pela realização de megaeventos esportivos em determinado país. Aliás, pesquisas mostram, em alguns casos, um declínio. Isso se deve, em parte, ao fato de que os equipamentos sociais para essas duas práticas são também muito diferentes. O esporte de alto rendimento exige cada vez mais equipamentos específicos e com um nível de tecnologia que os tornam extremamente caros e que não são utilizáveis pela população em geral.

Por outro lado, os equipamentos destinados à prática do cidadão comum têm a vantagem de poder compor de forma muito mais sustentável o ambiente urbano (ao contrário do esporte de alto rendimento, como observamos exaustivamente no caso da cidade do Rio de Janeiro que sediará a Olimpíada de 2016). São também, na maioria das vezes, multifuncionais em contraposição à normalmente monofuncionalidade dos equipamentos do esporte de alto rendimento. Por exemplo: ciclovias são utilizadas para deslocamentos para o trabalho, mas também para o lazer no final de semana pela massa da população, ao passo que um velódromo, que tem custo altíssimo, é utilizado somente para uma prática muito específica, por um grupo seleto e pequeno de atletas e ainda, de forma esporádica.

Esporte para todos

Essas análises desembocam, logicamente, na afirmação de que, para melhorar nosso índice de desenvolvimento esportivo, o sistema e as políticas públicas precisam priorizar efetivamente o esporte para todos (participação, como conhecido). Analogamente ao que acontece com o Sistema Único da Saúde, o SUS, que aposta na atenção básica, na medicina preventiva e da família, a prioridade e os recursos públicos não podem ser destinados ao desenvolvimento do esporte de alto rendimento. Esse é um segmento da economia, e o alto investimento de recursos públicos diretos e mesmo por meio de isenção fiscal é apenas uma forma de subsidiar a indústria do entretenimento no seu segmento, bastante lucrativo, do esporte espetáculo.

O esporte escolar, por outro lado, tem a função de contribuir para a formação ampla do cidadão por meio de uma espécie de “alfabetização esportiva”. Como dizia Paulo Freire a respeito da alfabetização, essa não pode ser ensinar a ler as letras e sim o mundo. Ou seja, esporte escolar é uma importante atividade da escola e deve estar incorporada ao seu projeto pedagógico e não servir aos interesses do esporte espetáculo; ao contrário, seu tratamento pedagógico deve permitir ao cidadão uma leitura crítica do significado do esporte para a sociedade e para a sua própria vida.

Para finalizar lembro que o renomado político da social democracia alemã Helmut Schmidt, já em 1975, numa reunião da Federação Alemã de Esportes em Frankfurt, afirmava que: “o número de medalhas não diz absolutamente nada a respeito da liberdade e do grau de justiça existente numa sociedade”.

VALTER BRACHT atua no Laboratório de Estudos em Educação Física, Centro de Educação Física e Desportos eUniversidade Federal do Espírito Santo